Com a ajuda de 1.612 doadores, Paulo Henrique Machado, de 45 anos, que vive há mais de 40 anos numa UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo, conseguiu arrecadar R$120.000,00 necessários para a produção de uma animação 3D.
Paulo sofreu paralisia infantil quando tinha um ano e meio. Desde então vive ligado a um respirador artificial. Na infância, ele e outras seis crianças também vítimas da pólio dividiram um mesmo quarto no HC. Desse grupo, só ele e Léca [Eliana Zagui, sua melhor amiga], sua vizinha de cama, sobreviveram.
Paulo tentava um financiamento coletivo para produzir a série de desenhos “As Aventuras de Léca e Seus Amigos”, mas só havia arrecadado menos de 10% do que precisava.
Na quarta-feira passada (29/05), após o site indicar uma arrecadação de R$120.001,00, a UTI entrou em festa. Até uma champanhe foi estourada.
“Estou muuiittoo feliz e agradecido. Desde segunda, fiquei atualizando a página [do site de financiamento coletivo] a todo momento, acompanhando minuto a minuto. Parecia corretor de bolsa de valor. Cada real doado teve muito valor”, disse ele.
A maior parte das doações foi de R$15,00 e R$30,00 que dão direito a ver o episódio piloto completo. Apenas uma pessoa fez uma doação entre R$ 4.000 e R$ 7.000.
Segundo Paulo, na próxima segunda-feira, começam as providências práticas para a animação.
“Vamos começar a assinar contratos, falar com produtoras. Alguns estúdios de som já me procuraram querendo ajudar. Tem uma amiga que fará a trilha sonora, outro amigo que vai dublar um dos personagens. Agora é colocar o time em campo.”
A História de Paulo
Minha mãe morreu dois dias depois que eu nasci. Com um ano e meio, tive paralisia infantil. Vim para o Hospital das Clínicas sem movimento nas pernas e, com o tempo, a paralisia atingiu também meu sistema respiratório. Desde então, dependo do aparelho de respiração artificial para continuar vivo.
Aqui no hospital, aprendi a ler e a escrever. Conclui o ensino médio e fiz vários outros cursos de informática e na área de softwares.
Lembro-me de quando era pivete, podia andar de cadeira de rodas pelo hospital e visitar meus amigos em outros quartos. Líamos historinhas infantis uns para os outros.
Minha capacidade de respiração foi piorando e eu já não podia mais sair da cama. Eu e mais seis amigos, todos com paralisia infantil, fomos transferidos para um quarto [só ele e Eliana Zagui sobreviveram]. Era uma gangue. Eu e a Tânia éramos os líderes e discutíamos muito. O principal motivo era a televisão. Havia dois aparelhos e a gente ficava competindo pelo volume, pelos programas. Os meninos queriam futebol, as meninas, novela.
Apesar de estarmos presos às camas, a gente inventava brincadeiras que estimulavam a imaginação. Aqui no hospital tive muita oportunidade de fazer coisas que qualquer outra criança podia fazer lá fora, como armar arapucas para pegar passarinho no fundo do terraço. A diferença é aqui a gente só pegava pomba. Um dia encontrei um gafanhoto e o amarrei com barbante. Fazia de conta que eu era o Pinóquio e ele o grilo falante. Também ganhava “presentes” dos funcionários. Uma atendente me deu uns tatus-bolas. Outro médico que trabalhava aqui, o doutor Giovani, que eu chamava de pai [Paulo tem pai, mas que raramente o visita], me trouxe duas pererecas, aquelas que dão em rio. Eu tentava pegar, e elas pulavam. Foi aquela histeria generalizada na UTI.
Em 1992, pensei o que poderia ter para produzir, criar alguma coisa. Foi quando escrevi uma carta para uma empresa pedindo a doação de um computador. Comecei a estudar informática sozinho. Era um modelo MSX, bem limitado. Em 1994, ganhei meu primeiro PC. No início, era aterrorizador, eu vivia quebrando o computador. A coisa melhorou depois que os hospital deixou os técnicos de informática à disposição para me ajudar. Hoje eu monto computadores. Tenho meu segundo PC montado.
A partir de 2004, lutei, também sozinho, para me profissionalizar na área de 3D. Em 2011, achei que eu precisava de um curso para trabalhar com computação gráfica. Desde então, comecei a alimentar a esperança de um dia me envolver profissionalmente com a sétima arte. Adoro cinema, meu ídolo é Charles Chaplin (1889-1977).
Foi aí que pensei numa animação com deficientes físicos. Mas não sabia se isso despertaria o interesse das pessoas. Foi então vendo as animações com personagens deficientes feitas por um estúdio britânico de que eu gosto [Aardman Animations, especializado em animações stop-motion], que fez a “Fuga das Galinhas”, que pensei estar no caminho certo. Pensei que as minhas aventuras e dos meus amigos aqui dentro do hospital já dariam um bom roteiro para uma série animada.
Ao colocar as histórias das nossas vidas, minha ideia é que as crianças possam assistir e aprender que o deficiente, numa cadeira de rodas, não é tão diferente assim. As histórias também contam sobre passeios que fiz ao Playcenter, ao circo, por exemplo.
Já roteirizei cinco histórias. Meu objetivo é finalizar a primeira temporada com 13 roteiros. Cada episódio tem 12 minutos. Se o vento continuar soprando, outras temporadas virão. E se as pessoas gostarem, nada impede que um dia vire um longa metragem.
Uma árvore para crescer precisa ser regada. A árvore em questão não é de uma só pessoa. A ideia foi minha, mas o projeto da animação pertence a todos.
Fonte: Folha