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Em cerca de uma dezena de laboratórios de grandes universidades e empresas, engenheiros biomédicos trabalham para descobrir maneiras de imprimir tecidos humanos vivos, na esperança de um dia conseguirem produzir partes personalizadas de corpos e implantes sob encomenda. Apesar de ainda estarem longe de ser utilizadas clinicamente, essas experiências relacionadas à engenharia de tecidos humanos representam o próximo passo em um processo batizado de fabricação adaptativa computadorizada, no qual desenhistas industriais produzem protótipos personalizados e partes acabadas de corpos utilizando impressoras 3D de baixo custo.
Em vez de produzir objetos de plástico, metal ou cerâmica, essas impressoras médicas 3D soltam esguichos de células vivas. Os pesquisadores chamam a técnica de bioimpressão. Essas máquinas são capazes de criar estruturas de tecido, camada a camada, e de gerar qualquer forma em 3D, como tubos que serão utilizados como vasos sanguíneos, cartilagens moldadas para compor articulações ou pedaços de pele e músculos para criar band-aids vivos, mostraram estudos recentes realizados em laboratório.
“É possível imprimir um tecido pedacinho por pedacinho”, disse Gordana Vunjak-Novakovic, bioengenheira do Laboratório de Células-Tronco e Engenharia de Tecidos da Universidade de Columbia. “A bioimpressão é uma técnica muito inteligente que trouxe um uso totalmente novo para um equipamento muito antigo que todos nós temos em casa, que é a impressora a jato de tinta.”
Na Universidade de Cornell, em Ithaca, no Estado de Nova York, pesquisadores estão imprimindo válvulas cardíacas experimentais, cartilagens de joelho e implantes ósseos. Na Universidade Wake Forest, na Carolina do Norte, bioengenheiros estão imprimindo células renais. Seus colegas estão produzindo uma impressora portátil para imprimir tecidos curativos diretamente sobre queimaduras ou machucados. Na Universidade de Missouri-Columbia, pesquisadores imprimiram vasos sanguíneos passíveis de serem utilizados e fibras de músculo cardíaco que ativam os batimentos.
No futuro, os engenheiros biomédicos esperam conseguir imprimir tecidos feitos sob medida, que serão utilizados em cirurgias, além de órgãos inteiros, que poderão ser empregados em transplantes para eliminar a longa espera dos pacientes que aguardam órgãos de doadores compatíveis, além de acabar com o risco de seus corpos rejeitarem os tecidos recebidos.
“Essa tecnologia tem, claramente, muitas aplicações”, disse o biofísico Gabor Forgacs, da Universidade de Missouri-Columbia, que auxiliou no desenvolvimento da tecnologia da bioimpressão.
Mas essa tecnologia ainda terá de enfrentar muitos obstáculos. Pode levar cinco anos ou mais até que o mais simples desses protótipos experimentais esteja pronto para ser usado em testes clínicos. Entre os problemas que podem ocorrer estão o desafio de manter grandes estruturas de tecido vivas diante da falta de ferramentas computadorizadas para a produção de órgãos personalizados.
“Várias empresas de biotecnologia estão avaliando o terreno para tentar descobrir qual é o valor de mercado dessas bioimpressões”, disse o engenheiro de robótica Hod Lipson, diretor do Creative Machines Lab, de Cornell, e coautor de “Fabricated: The New World of 3D Printing” (“Fabricado: o Novo Mundo das Impressões em 3D”, em tradução livre).
Liderando esse mercado está a Organovo, empresa sediada em San Diego, na Califórnia, que lançou as primeiras bioimpressoras 3D comerciais em 2010, utilizando tecnologia desenvolvida pelo doutor Forgacs, da Universidade de Missouri-Columbia, e pelos pesquisadores da Universidade Clemson.
Até o momento, a empresa produziu dez de suas bioimpressoras “NovoGen”, ao custo de vários milhares de dólares cada uma. A companhia não revela informações precisas referentes a seus custos.
“O equipamento permite que a gente imprima estruturas de tecido humano funcionais e vivas”, disse Keith Murphy, diretor-presidente da Organovo.
A Organovo ainda não vende suas bioimpressoras. Por enquanto, a empresa apenas mantém os equipamentos para seus próprios projetos de desenvolvimento de produtos. Mas a Organovo compartilha suas bioimpressoras com outros pesquisadores por meio de parcerias com a Pfizer, a United Therapeutics Corp. e a Faculdade de Medicina Harvard, entre outras instituições. Murphy recusou-se a revelar detalhes sobre esses acordos ou a dizer que tipos de produtos de células bioimpressas estão sendo desenvolvidos.
O equipamento da Organovo é programável e tem bicos impressores guiados a laser capazes de expelir “tintas” compostas por diferentes misturas de células. Cada gota de tinta é formada por uma solução que contém cerca de 10 mil a 30 mil células. A bio-tinta geralmente é composta de uma mistura obtida de uma cultura de células-tronco retiradas da medula óssea ou da gordura de doadores. Essas células podem, em seguida, transformar-se em vários tipos diferentes de células necessárias para construir os tecidos.
“Utilizamos blocos de células para compor uma estrutura em 3D, quase como se estivéssemos construindo alguma coisa com peças de Lego”, afirma Murphy. “As células fazem todos os acabamentos sozinhas”.
Para manter a estrutura da célula no formato desejado, a impressora dispõe camadas de gel solúvel em água ao mesmo tempo em que libera as células. “É como imprimir um molde ao mesmo tempo em que você imprime as células”, disse Sharon Presnell, diretora de tecnologia da Organovo. “Isso ajuda a dar forma à peça que está sendo impressa.”
Assim que a impressão é concluída, o tecido geralmente é capaz de se manter sem nenhum tipo de suporte após um período de 24 horas. Só então o molde de gel pode ser retirado. O tecido é mantido vivo em um biorreator banhado em nutrientes. Em geral, são necessárias mais três semanas para que o tecido fique forte o suficiente, o que ocorre à medida que as células constroem vínculos entre si.
Os tecidos finalizados impressos dentro de tubos, como os vasos sanguíneos, são capazes de suportar uma força cerca de seis vezes superior à força normal da pressão sanguínea do corpo humano – que, ainda assim, representa apenas a metade da força de um vaso sanguíneo natural.
Cada tipo de órgão e tecido tem sua própria e complicada arquitetura interna. Na Organovo, os pesquisadores acreditam que existem padrões básicos de células que, uma vez completamente compreendidos, podem ser prontamente duplicados pela técnica da bioimpressão.
“A maior parte dos tecidos é de unidades repetitivas”, disse Sharon. “O fígado é formado por uma série de glóbulos. O rim é formado por um conjunto de pirâmides. O corpo é um conjunto de tubos.”
Até o momento, a bioimpressão tem apresentado um desempenho melhor na produção de estruturas celulares relativamente simples, com espessura de poucas centenas de mícrons – o equivalente a alguns fios de cabelo humano -, formadas por cerca de 20 e poucas camadas de células. Entre outras coisas, tecidos maiores quando impressos, como cartilagens, geralmente não são fortes o suficiente para aguentar sozinhos o desgaste natural do corpo humano.
Mas, mais importante, segundo engenheiros biomédicos, é o fato de eles ainda não terem dominado a técnica de imprimir as redes microscópicas de capilares que correm entre as camadas de células e mantêm os tecidos normais vivos.
“Um dos grandes desafios é descobrir como alimentar esses tecidos”, diz Christopher Chen, diretor do Laboratório de Microfabricação de Tecidos da Universidade da Pensilvânia, no Estado de Filadélfia.
Apesar dessa restrição, essas tramas tridimensionais rudimentares de células humanas podem se mostrar valiosas para os esforços de pesquisa voltados ao descobrimento de novos medicamentos e aos testes de segurança pré-clínica, dizem pesquisadores.
Agrupadas em uma estrutura tridimensional, as células humanas se comportam de maneira mais normal do que quando se encontram em culturas de uma camada única e isolada, como são costumeiramente cultivadas na maior parte dos testes de laboratório, segundo os pesquisadores. Isso significa que aglomerados de células bioimpressas podem apresentar cenários mais realistas para estudos farmacêuticos, comparativamente às culturas de laboratório tradicionais e aos testes realizados com animais, que muitas vezes podem produzir resultados médicos dúbios ou equivocados.
“Com o passar do tempo, a técnica da bioimpressão será cada dia mais utilizada em testes e no desenvolvimento de medicamentos”, disse Lipson, da Cornell.
No curto prazo, a Organovo está se concentrando no desenvolvimento de culturas de células em 3D que poderão ser utilizadas para estudos voltados à descoberta de medicamentos e em testes de toxidade, que compõem um mercado mundial avaliado em cerca de US$ 11 bilhões por ano, segundo a BCC Research. Em março, a agência nacional americana de incentivo à pesquisa médica, NIH, repassou à empresa US$ 290 mil para a realização de estudos sobre como imprimir células hepáticas em 3D – tipo de célula importante para testes toxicológicos.
Ainda são necessários avanços nos programas de computador que permitirão aos médicos transformar, sempre que necessário, os resultados de exames de raio X e de tomografia computadorizada em diagramas digitais para a obtenção de impressões de partes do corpo, dizem pesquisadores. “Nós temos máquinas capazes de fazer quase qualquer coisa, mas ainda não temos todas as ferramentas de design para produzir tudo o que queremos”, disse Lipson. “Na área de bioimpressão, não há nenhum software de design capaz de produzir partes do corpo humano.”
No longo prazo, a bioimpressão deverá gerar preocupações éticas, à medida que os engenheiros responsáveis pela produção de tecidos migrem da substituição e da renovação de partes do corpo humano para a melhoria dessas mesmas partes, segundo Lipson.
“A questão desse tipo de melhoria sempre esteve aí, mas essa novidade a torna mais urgente”, segundo ele. “Se você é um atleta com cartilagens de joelho aperfeiçoadas, será que você deveria ser desqualificado por ser mais vigoroso?”
Fonte: Valor