Da entrada da Blue Sky, estúdio americano de animação que criou “A Era do Gelo” e “Rio”, já se ouvem os aplausos. Os funcionários estão reunidos para comemorar o fato de um de seus animadores ter sido citado pela “Variety” – uma das mais antigas e respeitadas publicações sobre a indústria do entretenimento nos Estados Unidos – como um dos melhores do mundo. Alheio à ovação, o diretor brasileiro Carlos Saldanha está sentado em um sofá na entrada da companhia, ao fundo da celebração, observando a tela de seu celular. Os aplausos parecem ser corriqueiros por ali – vez por outra o estúdio e seus funcionários são premiados e dá-se a cerimônia no saguão da empresa.
De lá, Saldanha segue para sua sala, onde convivem araras vestidas com estandartes de escolas de samba, um esquilo de pelúcia de olhos esbugalhados, uma capa de cetim que vestiu um touro no Equador, uma camiseta da seleção brasileira com o autógrafo de Pelé, garrafas de vinho ainda embrulhadas para presente e um sem-número de livros. Saldanha apanha as chaves do carro e ruma para a garagem da empresa. Vai dirigir por dez minutos até um de seus restaurantes preferidos na diminuta Armonk, cidade de pouco mais de 4 mil habitantes na divisa dos Estados de Connecticut e de Nova York, vizinha a Greenwich, onde fica a sede do estúdio de animação onde trabalha.
O Fortina é um restaurante italiano ruidoso que tenta ser moderninho – ouve-se, em alto volume, Madonna, The Doors e música pop de rádio FM nas caixas de som da casa, equipada com desnecessárias televisões de plasma que exibem filmes “pipoca”. Saldanha tem uma razão simples para não se incomodar com o ambiente confuso: pizza. “Você gosta de pepperoni? Eles servem uma de pepperoni marinado no mel que é divina. Posso pedir?”, pergunta à repórter. “Tem também uma saladinha de rúcula com frango maravilhosa”, completa, já fazendo os pedidos à garçonete. Ela, por sua vez, comenta: “Esse homem sabe o que quer! Acho que já veio aqui algumas vezes?”. Saldanha sorri: “Muitas”.
É para o restaurante italiano que ele foge da cantina da empresa com colegas de trabalho. Costuma repetir o pedido: um copo de Coca-Cola com gelo, salada de rúcula com pistache, limão siciliano e parmesão em lascas, acompanhada de uma guarnição de pedaços de frango, além de pizza de pepperoni com mel, tomate, queijo e azeite picante. “Adoro pizza. Lá em casa, nos fins de semana, a gente sempre tem um ‘pizza day’, em que vai todo mundo para uma pizzaria. As crianças amam.”
Aos 46 anos, o diretor brasileiro mora na cidade de Hoboken, em Nova Jersey, com a mulher, Isabela, e os quatro filhos (Manoela, de 17 anos; Sofia, 14; Julia, 7; e Rafael, 5). Com exceção do caçula, nascido no Rio, todos são americanos – o idioma oficial da casa, porém, é o português. Saldanha dirige todos os dias durante uma hora e meia para chegar ao estúdio, por volta das 9h. Pelo menos duas vezes ao ano segue com o clã Saldanha para o Brasil a passeio. Poucos dias depois deste “À Mesa com o Valor”, ele embarcaria com a família para o Rio. “Chegaremos ao país bem no meio das confusões”, diz o diretor, referindo-se às manifestações contra Dilma Rousseff que reuniram 1,7 milhão de pessoas no Brasil no fim de semana. Eleitor do tucano Aécio Neves, ele é favorável aos atos contra a presidente, embora diga não saber “o que os manifestantes reivindicam”.
“Acho que o povo tem que ir para as ruas, as pessoas têm que reivindicar, mas eu não estou sabendo ao certo o que querem. Você quer impeachment? Quer mudança? O que o povo quer? Acho que tem várias agendas, e o que resume tudo é mudança. Mas ela deveria ter sido feita antes da eleição. Agora que Dilma já entrou, é preciso ver qual é o melhor caminho para o país não ficar ao deus-dará”, afirma.
Se já estivesse no Brasil na noite do dia 8, quando, em ao menos 12 cidades, pessoas vaiaram a presidente e bateram panelas em suas varandas durante seu pronunciamento na TV, Saldanha não titubeia: “Com certeza eu iria para a janela bater panela. Estaria entre as pessoas que gritaram contra ela”. Para o brasileiro radicado nos Estados Unidos (em Nova York) desde o início dos anos 90, “Dilma, infelizmente, não tem nem mais o apoio para fazer mudanças”. “E isso é culpa dela mesma. Seu jeito de governar, de fazer acordos, tudo é feito de uma maneira inábil. Ela não tem habilidade nenhuma, não negocia com ninguém, toma decisões erradas. Acho que os eleitores dela nas últimas eleições não votaram porque gostavam dela, mas porque acreditavam que ela poderia ver o que estava acontecendo e mudar. Mas não. Ela continuou tomando decisões erradas”, avalia.
Ele acompanhou on-line as decisões de Dilma, pelos jornais e pela Globo Internacional, emissora a que assiste diariamente. “Procuro ser engajado como posso”, diz. Os debates sobre política são tão frequentes no cotidiano da família Saldanha que a filha mais velha, Manoela, planeja estudar relações internacionais na Universidade de Columbia, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, orgulha-se o pai.
Saldanha ostenta o título de “brasileiro mais bem-sucedido de Hollywood” desde que dirigiu “A Era do Gelo 2” (2006), que obteve US$ 660 milhões em bilheteria no mundo todo, superando as cifras do primeiro longa. Não à toa a Fox lhe deu carta-branca (e US$ 100 milhões) para desenvolver “Rio” (2011). O filme protagonizado por uma ararinha-azul na capital carioca arrecadou US$ 500 milhões “só em bilheteria, sem contar o licenciamento de produtos”, explica Saldanha, referindo-se aos incontáveis objetos lançados na esteira do filme. A sequência “Rio 2” (2014) repetiu o sucesso do primeiro. “O que faz de uma animação um sucesso é, antes de tudo, uma boa história”, diz. “Pode ser uma história simples, mas tem que ser universal, tem que ser forte.” Antes da carreira deslanchar, Saldanha foi codiretor de “A Era do Gelo” (2002) e “Robôs” (2005), ambos ao lado de Chris Wedge. Fazia também efeitos especiais para longas como a comédia “Joe e as Baratas” (1996).
Hoje, além de ter contrato de exclusividade com a Fox (que, em 1997, adquiriu a Blue Sky Studios), o brasileiro mantém sua companhia, a BottleCap Productions, destinada a longas de “live-action” – termo que define os filmes de não animação, ou seja, vividos por atores de carne e osso. “Não é que tenha me cansado de animação. Jamais. Animação é a minha casa. Mas faço isso há 23 anos. Estou buscando novidade, entende? Por isso, corri atrás de fazer ‘live-action’. Na verdade, o ideal seria balancear: fazer uma animação, depois um ‘live-action’, voltar à animação e, em seguida, outro ‘live-action’, e assim sucessivamente.”
“Pensava em voltar para o Brasil por questões emocionais, nunca por questões de trabalho ou financeiras. Mas vivo o melhor dos mundos”
A equipe de sua empresa se dedica sobretudo a ler roteiros desse tipo, em Los Angeles e em Nova York. Saldanha apresenta as ideias que considera interessantes à Fox e, com os executivos do estúdio, decidem em que vão investir. Assim, segundo o diretor, surgiram as ideias das adaptações de “Rust: Visitor in the Field” (2011), “graphic novel” de Royden Lepp, e de “Timeless”, nova trilogia de livros infantojuvenis de Armand Baltazar (antigo artista da empresa de animação americana Pixar). Ambos são histórias de ficção científica, usarão atores e ainda estão em desenvolvimento, distantes dos sets. Em “Timeless”, o conceito de tempo deixa de existir, unindo personagens do futuro, do passado e do presente em Chicago e, nesse cenário, um garoto tenta salvar o pai, capturado pelo exército romano. A produção do longa será assinada por um dos ídolos de Saldanha, Ridley Scott.
“‘Blade Runner’ [obra de 1982 de Scott] é o meu filme preferido. Mas também gosto muito dos longas do Steven Spielberg, como ‘E.T’ e ‘Tubarão’. Sempre volto a esses clássicos”, diz. No gênero animação, são também os clássicos que fazem brilhar os olhos do diretor carioca, como as aventuras de Tom & Jerry, a magia de Pinóquio e longas como “Fantasia” (1940), da Disney. É do estúdio, aliás, a animação “Ferdinando, o Touro”, lançada há quase 80 anos (em 1938) e que agora ganhará versão 3D nas mãos de Saldanha. Trata-se de um desenho simplório sobre um touro que não quer entrar para as touradas, mas, sim, seguir uma vida contemplativa que se presta mais aos aromas das flores do que às bravatas nas arenas espanholas.
Ao apresentar um projeto de animação sobre um touro para a Fox, Saldanha ouviu dos diretores-executivos da companhia que era possível comprar os direitos de “O Touro Ferdinando” (1936), clássico infantil da literatura americana de Munro Leaf (1905-1976) que inspirou o desenho da Disney nos anos 30. “Eu já tinha escrito a história de um menino e de um touro, mas reescrevi tudo para usar o livro. É um processo de negociação constante [com a Fox]. No mundo do cinema, você precisa deixar seu ego na porta. É claro que quebramos o pau às vezes, mas tenho que respeitá-los, afinal estão bancando meu filme. A sorte é que sou uma pessoa agregadora e lido bem com esse processo.”
Para desenvolver um personagem, o diretor e os animadores de sua equipe cercam-se de referências. Se em tempos de “Rio”, ornitólogos, livros sobre pássaros e miniaturas de ararinhas-azuis circulavam pela Blue Sky, agora a casa vive seu momento de bovinocultura – o que explica a capa usada por um touro no Equador e agora presa à parede na sala de Saldanha, ou a miniatura de um touro de porcelana na mesa do diretor. No filme, o protagonista (o touro existencialista Ferdinando) é levado de sua fazenda original para outra, onde será treinado para touradas por uma cabra, até ser conduzido ao espetáculo numa arena, tudo na Espanha.
“O conceito de animação é dar vida a coisas inanimadas. Sempre dizemos que, na animação, deve-se fazer o que não se pode num filme convencional. Por exemplo, nunca vou poder treinar um touro a falar na vida real, mas posso fazer um touro animado. E, na tela, esse touro acaba sendo um pouco humano, ou seja, o público não vê apenas um bicho, mas uma pessoa que conhece, por quem criou empatia”, avalia.
Saldanha aparenta ser um homem simples, alheio ao luxo do cargo que ocupa – os cargos com empresas do porte da Fox costumam ter cifras milionárias, embora os valores exatos sejam mantidos em segredo por ambas as partes. O brasileiro passou o início da infância e boa parte das férias em Marechal Hermes, no subúrbio do Rio. Seus pais (um militar e uma dona de casa de classe média, já mortos) nasceram lá, mas viajaram pelo país seguindo as transferências que o Exército demandava ao patriarca. Assim, o diretor e as irmãs (uma é corretora imobiliária e a outra, médica) já moraram em Forte de Coimbra, Alegrete e Resende. De volta ao Rio capital, passaram a adolescência na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade.
Naquela época, Saldanha já era desenhista amador e passava longas horas em frente ao computador, interessado pelas possibilidades da máquina. Seus pais o pressionaram a fazer faculdade de processamento de dados. A opção de estudar arte fora vetada, então, pela família. “Eles diziam que eu era jovem demais para tentar ser artista”, lembra, rindo. À época, já namorava Isabela Scarpa, então estudante de engenharia. Quando soube que, em Nova York, poderia ter acesso aos melhores cursos que uniam arte e computação gráfica, Saldanha propôs casamento e uma viagem aos Estados Unidos à namorada. “O plano era ficar seis meses. Nunca mais voltamos.”
No início, dividiam um estúdio no East Village, em Manhattan. O apartamento era de uma amiga da mãe de Isabela que, solidária ao casal, acabou por acolher a dupla por 11 anos e ajudou também a bancar o mestrado de Saldanha na School of Visual Arts. “Eu só tinha dinheiro para fazer um curso, mas os professores me encorajaram a tentar o mestrado, diziam que eu levava jeito. Não tinha dinheiro para isso, mas eles insistiram. Procurei vários amigos na época, constrangido, pedindo ajuda. Até que essa amiga disse que bancaria e sabia que, um dia, eu lhe devolveria o dinheiro. Em um ano, eu estava dando aula no curso em que tinha começado como aluno e já fazia o mestrado.” Em 1993, um de seus professores, o diretor Chris Wedge, convidou o brasileiro para integrar a equipe da Blue Sky como animador.
No começo, fazia apenas publicidade. Antes de ser comprada pela Fox Films e se tornar uma das três maiores do cinema de animação (ao lado de Disney/Pixar e DreamWorks), a Blue Sky fazia sobretudo propaganda e efeitos especiais sob encomenda para filmes. “Nova York toda estava fazendo publicidade com animação. Estava no auge daquilo. Todos queriam que uma latinha de Coca-Cola falasse, que a pílula do Advil ou um M&M se transformassem em personagens. Nós fazíamos isso. Estávamos no mercado, mas era aquela coisa: fazíamos publicidade, tratávamos com agências, e o trabalho não tinha tanto valor criativo”, lembra Saldanha.
Os menos de cem funcionários da empresa conseguiram se organizar para deixar com que Chris Wedge tocasse “Bunny”, que ganhou o Oscar de curta-metragem de animação em 1998 e chamou a atenção para a Blue Sky. “O ‘Bunny’ foi um projeto coletivo, embora a direção e a concepção sejam do Chris. Todo mundo trabalhou no filme. Se você tinha um tempo, passava lá e modelava alguma coisa. A empresa tinha umas 70, 80 pessoas. Levamos dois anos para fazer um filme de oito minutos!”
Atualmente, segue Saldanha, a tecnologia se desenvolveu de forma a agilizar o processo, mas não tanto. São necessários dois anos para finalizar e lançar um longa de animação. O desenvolvimento de “Ferdinando, o Touro”, por exemplo, está ainda no início. Há centenas de versões do roteiro, e um calhamaço acabara de chegar à mesa de Saldanha no dia deste encontro. Em outubro, a equipe iniciará a animação de fato, e o filme chegará aos cinemas em 2017. Até lá, o diretor deverá ter a resposta sobre uma terceira edição de “Rio”, sonhada por ele, mas em negociação com a Fox.
Carregar os projetos para o Brasil e desenvolvê-los no país é algo impensado. Para Saldanha, o país está distante de ter o fluxo de produções necessário para manter um estúdio. “A animação exige uma estrutura de longo prazo. Não é só montar uma equipe e fazer um filme. Quando você monta uma equipe, você tem que ter mais um projeto preparado, caso contrário a equipe vai se desfazer e você vai ter que começar tudo de novo. A estrutura temporária não funciona. Fazer uma tendinha para montar um estúdio não dá. Tem que se pensar a longo prazo”, explica o diretor.
Outro empecilho, completa, é o custo. Um filme convencional pode sair “barato” para os padrões de Hollywood, algo em torno de US$ 10 milhões. Já uma animação em 3D, segundo Saldanha, tem orçamento em torno de US$ 100 milhões. “Não tem como fazer 3D com pouco dinheiro. A qualidade sofre”, diz, taxativo, antes de ser interrompido por uma ligação. É tempo de voltar ao estúdio. Ele pede à garçonete que embrulhe as duas fatias de pizza de pepperoni que restaram na mesa. “Para aquele lanchinho das cinco da tarde, sabe?”
A paisagem no caminho de volta ao estúdio é branca. Os lagos estão congelados e a neve cobre os parques que rodeiam a estrada. Enquanto dirige, Saldanha diz ter saudade do clima tropical. Está cansado dos invernos rigorosos do país que escolheu para viver. “A gente vai ficando mais velho e vai achando mais chato o inverno. Eu entendo por que as pessoas se aposentam e vão para a Flórida. Antigamente, o clima não me incomodava, mas agora acho que é muito tempo com frio, tempo fechado, neve, falta de sol? E é difícil morar fora tendo família no Brasil”, pondera.
Por outro lado, os planos de volta estão fora de cogitação. “No início, éramos só eu e minha mulher, agora tem as crianças. Ficávamos sempre falando em voltar, mas nunca tive nem tempo para pensar, porque as coisas sempre foram acontecendo muito rapidamente, uma em seguida da outra. Nunca tive uma pausa, nunca falei: ‘Ah, esse ano não rolou nada, vamos pensar em voltar’. Não. Eu comecei a fazer o cursinho; quando era para voltar, comecei o mestrado; quando terminei, já tinha emprego e não parei mais. Pensava em voltar para o Brasil por questões emocionais, nunca por questões de trabalho ou financeiras. Mas vivo o melhor dos mundos, ou seja, tenho condições financeiras de ir e vir quando quiser e, ao mesmo tempo, fazer uma coisa que eu gosto muito, que é meu trabalho, e é aqui, nos Estados Unidos. O mundo ficou pequeno, entende?”
Fonte: Valor